A terceira e última noite da programação do Colóquios Decano João Gomes Mariante revelou narrativas saborosas, apresentações consistentes e animadas, e até uma espécie de furo jornalístico: em primeira mão, Judith Scliar anunciou um evento futuro que abordará a literatura do escritor, médico e esposo Moacyr Scliar, falecido em 2011, com obras exclusivamente no campo da Medicina. “Ele escreveu mais de 20 livros sobre este tema e pouco se divulga a respeito”, disse ela, ao depor como convidada especial do “Colóquio Scliar – Kafka” em live da Academia Sul-Rio- Grandense de Medicina ao anoitecer de terça-feira (10/11/2020).
A viúva afirmou também que Moacyr considerava Franz Kafka como seu autor predileto (embora a Bíblia fosse sua obra preferida). Observou que a profissão de médico com atendimento em vilas populares da capital concedeu-lhe experiências desconhecidas em sua formação pessoal no conforto da família do pai contador de história e da mãe professora que estimulava seus escritos, e nos colégios Israelita, Rosário e Júlio de Castilhos.
Assim, lembrar Scliar e Kafka tornou-se uma prazerosa conjugação cultural para os também médicos, Acadêmicos Cláudio Eizirik e Nilson Luiz May, compartilhada com seus tele ouvintes virtuais na plataforma Zoom.
HUMOR MELANCÓLICO
Eizik resumiu um panorama geral da literatura judaica, retrocedendo às origens históricas do humor verbal tão peculiar que se espalhou pelo mundo, especialmente no século 20, florescendo nos Estados Unidos, nas mais diversas expressões culturais e de comunicação. Destacou que o cineasta, ator e escritor Woody Allen lançou recentemente a autobiografia “A Propósito de Nada” repleta de exemplos da do ânimo e temperamento da comicidade judaica.
Naturalmente, incluiu, em sua exposição, situações e textos de Scliar versando sobre humor diferenciado que não provoca gargalhadas mas resulta em risos, ou sorrisos, por vezes melancólicos e até tristes, e anedóticos, mas, sobretudo, resilientes, como a própria trajetória do povo judeu recorrendo ao humor para defender-se das adversidades – inclusive ao sofrimento dos campos de concentração nazistas. Entre as obras ‘sclirianas’ que recendem à expressão deste estado de espírito citou “A Condição Judaíca” e “Do Éden ao Divã – Humor Judaíco”.
MÃE COM GARRAS
May apoiou-se em roteiro sucinto para discorrer em 20 escassos minutos sobre a vida e a obra de Kafka sob o enunciado “Reencontro em Praga”. A cidade, onde o autor de “O Processo”, “O Castelo” e “A Metamorfose”, nasceu em 1893, enterrado em 1924 e escreveu todos os seus livros, de certo modo, na visão de May, “aprisionava” o escritor – que era advogado por formação e chamado de ‘doutor’. O palestrante acentuou que Kafka definia a capital tcheca como uma “mãezinha com garras”. A trajetória pessoal do escritor – vivendo sob o contexto do Império Austro Hungaro, seus pais, familiares, amigos e diários, são o pano de fundo de sua obra literária.
May observou que esta imensa e herança, revelada ao mundo só em 1937, poderia simplesmente não existir se o amigo Max Brod tivesse seguido o desejo contido em carta de Kafka de que tudo que escrevera deveria ser queimado, após sua morte – foi vitimado por tuberculose pulmonar aos 41 anos. “Biógrafo de Kafka, Brod tem mais de 80 livros publicados, mas quem é conhecido pelo enorme talento literário é Kafka”, cotejou o palestrante.
AMORES E BASQUETE
No contexto explícito do bom humor, o mediador Acadêmico Germano Bonow fez provocações gracejando com os palestrantes. Disse a May que, com tanto conhecimento acumulado sobre seu homenageado, poderia discorrer também sobre os amores de Kafka.
Também recordou a Eizirik que Scliar tinha um forte perfil esportista: era torcedor do clube Cruzeiro gaúcho e jogador de basquete que se reconhecia esforçado e de pouco talento. “Na cancha da ACM tem uma estrela marcando o local do qual ele fez um raro arremesso de três pontos”, garantiu o Acadêmico que lançará obra sobre o escritor gaúcho que integrou a Academia Brasileira de Letras.
VIGOR INTELECTUAL
O presidente da Academia, Carlos Henrique Menke, elogiou a feliz iniciativa da programação promovida durante a 66ª Feira do Livro de Porto Alegre e rememorou a convivência do decano Mariante com os membros da entidade. “Enquanto conseguiu se deslocar ele ia, de andador, até a sede, para participar ativamente dos eventos, sempre pró ativo, contribuindo com seu vigor intelectual”, testemunhou.
O idealizador dos Colóquios, Acadêmico Rogerio Xavier, reforçou a importância do escritor, jornalista e psicanalista dr. Mariante para a Academia e salientou as grandes amizades conquistadas por ele junto a muitas pessoas – como as que espalharam suas cinzas em volta das raízes de um ipê em Venâncio Aires, onde o médico falecido aos 102 anos tinha começado sua trajetória profissional nos anos 1940.
POEMAS
Encerrando o evento, Rogério Xavier leu os seus poemas “Deleite” e “Meditação de Taís”, publicados respectivamente nas páginas 24 e 34 da obra “Anjos sem Face”, um dos livros que o dr. Mariante acolhia em sua biblioteca particular doada a entidades médicas.
Deleite
De rosto colado ao corrimão
da ponte ‒ olhos tementes
em gota-surpresa ‒ lá
de cima do belvedere
um torreão da igreja
fino e distante
perfura a cidade
deitada e nua
daí escuto
repicar de
sinos
Meditação de Taís
Trem passa ao largo: movimento andante: vívido
lanterna mágica: ondas luminosas: semáforos
pingos de tinta verticais a tudo encobrir
vozes indulgentes ao torpor de Taís
não quer ser incomodada
turbilhão distante
graça