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COLÓQUIOS JOÃO GOMES CAMARGO

Obras de Camus e Saramago: o homem reage diante  das tragédias inesperadas como a pandemia da Covid 19

Na parte final da obra “A Peste” de Albert Camus (1913/1960) um banho de mar torna-se um bálsamo revigorante para o corpo e a alma do dr. Bernard Rieux e de seu amigo Jean Torrou, como destaca o acadêmico Gilberto Schwartsmann. No desfecho do livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (1929/2000), uma chuva verte caudalosa e benvinda sobre as pessoas que festejam o fim da epidemia da falta de visão coletiva da comunidade, como ressalta o acadêmico José J. Camargo.

Não são meras coincidências sobre o valor do impacto positivo água no humor das pessoas. Aparentemente, os dois escritores recorrem à metáfora de limpeza da sujeira humana e do ambiente externo que se acumulou durante as duas epidemias, regenerando as pessoas.

“Ensaio…” aborda uma epidemia provocada por uma estranha cegueira branca. Isto é, as pessoas não vêem escuridão; a visão limita-se a um branco absoluto. Toda a população que vai ficando cega é confinada no prédio de um sanatório, onde surgem os conflitos comuns aos comportamentos individuais de uma sociedade coletivamente aprisionada, com seus medos e incertezas, fragilidades e disputas, solidariedade e egoísmo.
A analogia com o tempo que vivemos com as consequências da pandemia do coronavírus também está presente na obra de Camus. Nela uma epidemia de peste bubônica causada pela morte de ratos leva a população às condutas próprias do ser humano, coletivamente reagindo sob a pressão de tragédias inesperadas, das mortes, dos atos criminosos e, sobretudo, da solidariedade. .

Há outras semelhanças entre os dois autores (integrantes do Partido Comunista, por exemplo) reveladas nas duas aprofundadas apresentações de Camargo e Schwartsmann, mediadas pelo acadêmico Darcy Ribeiro Pinto Filho, nesta quinta-feira (5/11/2020) em live no segundo episódio dos Colóquios Decano João Gomes Mariante (1918-2020), que a Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina (ASRM) promove durante a 66ª Feira do Livro de Porto Alegre.

Ambos releram os livros para qualificar ainda mais as exposições. Camargo salientou que teve uma outra percepção com a nova leitura, de certa forma atendendo o desejo do autor português de que o leitor sofresse tanto ao ler quanto ele padeceu ao criar a obra torturante. “Se o livro é exatamente o mesmo, então fui eu que mudei”, admitiu o acadêmico. “De todo modo ler Saramago vicia em Saramago”.

Schwartsmann conheceu “A peste” na fase colegial, leu com tradução livre de Graciliano Ramos e agora reviu com outra versão mais literal, fiel ao que o escritor argelino pretendia transmitir. Segundo ele, que enfatizou a trajetória de Camus, morto aos 47 anos em acidente automobilístico e que visitou Porto Alegre em 09/08/1949, “A Peste” faz parte do segundo ciclo literário do autor, conhecido como Revolta – que sucede a etapa do Absurdo e antecede a fase do Amor. Entretanto, Revolta não é uma ação de pura e gratuita rebeldia, mas de uma resposta do homem em sua obstinação por viver ao acaso, ao imponderável da existência.

Há também diferenças flagradas pelos palestrantes. Em “A Peste”, as mulheres não são protagonistas, notou Schwartsmann. Já em “Ensaio…” é a mulher do médico, única personagem que não fica cega, que assume papel essencial na trama.

Os estilos literários igualmente se diferenciam. Camus é seco e direto.
Saramago usa a vírgula como ponto final e recorre à letra maiúscula para anunciar a troca de interlocutor.
Por genialidade similar no conjunto da obra, os dois foram agraciados com o Prêmio Nobel de Literatura.
Camus em 1957; Saramago em 1998.

E como lembrou o presidente da Academia, Carlos Henrique Menke, os dois livros foram transformados em roteiros de filmes de grande sucesso.

Ao final, depois de comentários dos participantes na plataforma Zoom, o responsável pelo evento cultural, acadêmico Rogério Xavier, resgatou um poema com que ele homenageou o decano na data do seu aniversário de 100 anos, em 2018.

SAUDAÇÃO AOS CEM ANOS DO DECANO JOÃO GOMES MARIANTE

Rogério Gastal Xavier (26/02/2018)

Vivi cem anos porque quis… Assim me dizem, porque desde guri
sempre fui o Patriarca da família, ao que ascendi,
porque o Destino assim quis…

E a que também fosse o Decano entre os colegas de Artes e Ofícios

Se filho de Hipócrates, pai da Medicina, também o sou
à deusa Minerva, a quem peço companhia
para tornar-me justo

E às botas de Hermes, a estas que hão de seguir levando-me a toda parte do mundo que meu olhar atinge

O Jornal Mente-Corpo foi dádiva desses anos derradeiros,
o presente da Musa encantadora de Ulisses

À Academia Sul-Rio-Grandense de Medicina somente tenho loas

E se me aflijo por mais não ter feito, ao que poderia custar não registro

É porque sempre quis ser âncora, convés e proa aos meus amigos
e razões para viver não me faltam

Meu lema é prosseguir.