Nunca me senti tão sozinha quanto naquela noite sem estrelas de outubro. A lua reluzia como uma pérola, sozinha entre as nuvens e a escuridão. Deitada desajeitadamente em um pufe na sacada, senti o vento brincar com meus cabelos, acariciar meu rosto e embalar-me em um sonho perturbado.
Tinha sido como um sonho que eu já vinha tendo há muito tempo. Desde que entrei no internato, nunca me senti preparada, nem tão médica quanto meus colegas aparentavam ser. Talvez eu tivesse medo de não ser o suficiente, e a responsabilidade de ter outra vida dependendo de mim fosse além do que eu pudesse aguentar. Minha incapacidade de dormir tranquila me deixava alerta e desesperada durante o dia todo. Os momentos em que passava no hospital, fossem por visitas ou por qualquer outro motivo, ainda me faziam sentir animada e esperançosa, como no primeiro dia de aula, contudo eu estava apavorada por dentro.
E foi assim que eu a conheci, pequena e frágil no hospital. Sua mente ágil era capaz de falar sobre tudo, mas parecia aprisionada dentro de sua limitante e senil casca. Conversávamos sobre todos os assuntos que o dia permitia e, ao final, quando as pausas entre as falas iam ficando maiores, ela sorria, com toda a doçura que uma senhorinha de 85 anos poderia ter, agradecendo por ter sido ouvida.
Semanas passaram, rotações passaram, mas eu ainda dava um jeito de estar no quarto 415. Lá, as conversas seguiam, como se os assuntos fossem infinitos e o tempo não passasse. Ela me contara sobre seus filhos, seus netos, seus gatos, sobre como tinha costurado por anos, mesmo que calos e picadas de agulha a machucassem, para que seus filhos pudessem se formar. Quando ela falava, eu simplesmente não conseguia me desencantar dela. Parecia que a senhorinha esquecia toda a dor, todos os muitos aparelhos que a mantinham viva, toda a restrição de mobilidade. E parecia me levar para um mundo idílico, bondoso e eternamente seguro.
Quando as noites de tempestade chegaram, intensas, ladinas e gatunas, esgueirando-se pelos cantos até que se expandissem em uma majestosidade de trovões e raios, eu esperei. Esperei que elas passassem sem levar nada de mim. Novamente, senti-me incapaz de fazer algo contra minha tempestade interior, pensando que, talvez, não conseguiria resistir à pressão, mesmo sabendo que precisava enfrentá-la.
Decidida, fui ao quarto 415, enquanto chovia, ventava e o céu se iluminava periodicamente pelos raios. Uma última vez, ela não falou nada. Apenas olhou, seu olhar terno e morno, e sorriu calorosamente. Então, eu entendi. Olhei para o céu, incapaz de chorar e perturbar o silêncio. As noites haviam clareado, estrelando-se, e eu soube que estava no caminho certo. Pela primeira vez na vida, meu caminho estava claro como naquela noite. Eu simplesmente sabia.
Um movimento na sacada no prédio da frente chamou minha atenção. Um suave brilho, a movimentação de um corpinho ágil e pequeno e grandes olhos amarelos fecharam contato com os meus. Assim nos encaramos pelo que pareceram horas, incapazes de nos separar, como num encontro de almas.
No momento que o gato desviou seus olhos dos meus, olhando para cima, para o infinito, para a paz, segui seu olhar, desejando que ficasse um pouco mais comigo. Quando olhei para cima, vendo as estrelas, em seu tímido brilho, sorri para mim. Busquei o gatinho novamente, mas ele não estava mais lá, desaparecera na escuridão. E eu nunca me senti tão completa quanto naquela noite clara, em que a lua reluzia como uma pérola entre as estrelas.
*Estudante de Medicina da UPF, 3º colocada no Concurso de Contos de Temas Médicos da ASRM