| por Luís Felipe Saldanha*
Acomodei-me, admirando pela janela o branco e azul do céu. Não ficaria surpreso se, ao invés do médico, surgisse um anjo dizendo que o câncer se espalhou e que tudo foi rápido e fácil. No entanto, anos de medicina me ensinaram que nunca é. A porta abriu. Uma jovem de profundos olhos castanhos e cabelos volumosos vestia uma blusa bege e um sorriso largo. Perguntou como me sentia hoje, fez uma piada sobre o clima e, do outro lado da mesa, puxou o calhamaço de exames. Não fazia muita diferença para mim, mas há que seguir protocolos.
– Vou acompanhá-lo pelos próximos anos.
– Anos? – meus dentes abriram em deboche e juro que sem intenção – tanto tempo assim?
Ela respondeu: “Sei que o senhor foi médico, mas os tratamentos melhoraram”. Esfreguei os olhos. Sentia meu corpo afundando na cadeira, como se ela fosse de areia movediça, mortal e aconchegante – “Desculpe. Não quis ofender” – suspirei – “Não sei por que razão tive vontade de rir. Uma mancha no pâncreas” – eu ria como se estivesse em um show do Ary Toledo. Respirei fundo. O punho contra o abdômen. Sentia raiva do meu corpo por não obedecer: medicina era a única coisa que eu entendia e agora parece que nem isso entendo. Por que estou rindo?
-Ulisses – ela procurava meus olhos cabisbaixos. O abismo de suas pupilas me dragava pelas bordas castanhas: “Tudo bem se sentir confuso e rir. Isso também é uma forma de lidar com notícias ruins, mas vamos trabalhar juntos, ok?”
Concordei com a cabeça e desde então a conversa fluiu. Ela me explicou seu ponto de vista, o resultado, as proteínas, os fármacos, as porcentagens. Não questionei o que eu entendia, nem o que achava que entendia. Deixei que assumisse o papel do qual sempre fui a estrela principal. Foram aqueles olhos castanhos que me convenceram de que eu não era mais o protagonista que jurei a outros olhos que seria.
-O quê? – me perguntou. Sem entender, olhei para ela que disse: “O senhor falou a palavra ‘filme’”.
-É meu corpo me traindo de novo. A nossa conversa lembrou uma amiga que queria ser atriz – segurei meu dedo, procurando por um anel que nunca existira – e eu deixei de falar com ela, dizendo queria atuar no filme da minha vida. Uma bobagem.
-Ela conseguiu ser atriz?
-Não sei. Quando a Penélope foi para o Rio…
-Um momento, qual era o sobrenome dela? – agora era ela quem se ria – Rio, atriz, Penélope. Que mundo pequeno! O senhor conheceu a minha mãe.
A incredulidade dirigiu nosso diálogo. Interrompidos apenas pelo relógio: “Acho que você deveria telefonar para ela. A minha mãe vai amar ver um amigo”.
-Éramos um pouco mais do que amigos.
-Mais um motivo para ligar. Ela está só desde que veio morar comigo – e me entregou o número escrito em um receituário.
Saí encarando o papel. Faz anos que não via aqueles olhos castanhos. A caixa eletrônica me pedia tempo. O pâncreas me daria onze meses, três bipes e um alô.
*Estudante de Medicina da UFPel, 1º colocado no Concurso de Contos de Temas Médicos da ASRM