Se pudesse retroceder no tempo, ele responderia de maneira muito diferente ao psiquiatra que lhe perguntou por que queria ser médico. Passadas tantas décadas, não há como alterar o passado. E lá está, fixada em sua memória de 1964, a imagem do estudante da UFRGS, diante do que chama de “ciclópico” Dr. Manoel Antonio Pitta Pinheiro de Albuquerque, questionando sua escolha. E lá está ele respondendo, com a impertinente sinceridade juvenil, mais uma vez, que “não sabia” a razão para estudar Medicina. Hoje, aos 83 anos, o Acadêmico Santo Pascual Vitola responde, com convicção, sua essencial motivação para ser médico: “Ajudar principalmente as crianças com insuficiência renal, que sofrem tanto com esta doença devastadora, capaz de invalidar uma vida inteira”, diz ele, rememorando desafios, percalços, conquistas e sucessos de sua destacada trajetória, sobretudo notabilizado como cirurgião especializado em transplantes que venceu os tempos heróicos de total descrença no procedimento e resistência inexplicável à doação de órgãos – além da falta de estrutura, controle, fiscalização e financiamento estatal.
Nascido em Porto Alegre em 1 de novembro de 1941, é filho orgulhoso dos italianos Leonardo Vitola e Ângela Rosa Laitano. Ambos, sem ainda formar o casal que constituíram em 1938, vieram de Morano Calabro (ele em 1925; ela em 1938), que é considerado um dos “mais belos burgos do sul da Itália”, como anuncia este ítalo-brasileiro graças à origem familiar e também aos títulos recebidos do país europeu que ele proclama com palavras do idioma dos antepassados. Cita a comenda de Gran Ufficiale dell’Ordine al Mérito della Repubblica Italiana, o título de Cidadão Honorário de Morano Calabro e o Troféu Distinzione Comunità Italiana da Associazione Culturale do Rio Grande do Sul.
A língua falada no cotidiano familiar, aliás, foi um impeditivo para os estudos iniciais em português nas escolas da capital gaúcha. Com dificuldades vocabulares, quando tinha idade de ingressar no primeiro ano escolar, foi encaminhado para o jardim de infância para aprender a linguagem com os brasileiros menorzinhos. Vingou-se silenciosamente do rebaixamento pedagógico. Cursou o primário no Grupo Escolar Presidente Roosevelt, o ginásio no Colégio Nossa Senhora da Assunção e o científico no Colégio Rosário. Foi o orador da turma no ginásio e presidiu, com pompa estudantil, a comissão de formatura do científico.
Santo Vitola ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 1964. Estudante, foi interno do Pronto-Socorro Cruz Azul e aprovado, em segundo lugar, no concurso público para Interno Bolsista do Hospital de Pronto-Socorro de Porto Alegre. Em 1968, ingressou como estagiário no Departamento Médico da CEEE, onde se aposentou em 1995. Formado em 1969, fez dois anos de residência em Cirurgia Geral no Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFRGS, na Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (ISCMPA).
Após a residência, foi Professor Voluntário na Enfermaria 36 da Santa Casa. De 1971 a 1973, foi médico plantonista do Hospital Moinhos de Vento, na função de chefe dos médicos plantonistas, participando da criação da primeira UTI do hospital. Em 1975, foi aprovado como Auxiliar de Ensino no Departamento de Morfologia do Instituto de Biociências da UFRGS. Em 1976, já professor assistente, foi transferido para o Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFRGS, onde se aposentou como professor associado responsável pelo Serviço de Cirurgia do Pâncreas e Vias Biliares do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) em 2011.
Desde 1977, faz parte do grupo de transplantes da ISCMPA. Entre os pioneirismos que protagonizou está a liderança da equipe cirúrgica que removeu os rins do primeiro doador com morte encefálica no RS, fez a primeira retirada de múltiplos órgãos fora do estado e, em 15 de agosto de 1987, realizou a primeira remoção de pâncreas e rins em bloco, com os órgãos utilizados no primeiro transplante simultâneo de rim e pâncreas no Brasil e na América do Sul.
Em 1996, houve uma reformulação do grupo cirúrgico de transplantes abdominais da ISCMPA, assumindo a chefia dos transplantes de pâncreas, dos transplantes renais pediátricos e de metade dos transplantes renais em adultos.
Em 1998, reativou o programa de transplante de pâncreas com uma técnica que permitia a retirada do pâncreas e do fígado de um mesmo doador, realizando 89 transplantes simultâneos de rim e pâncreas, além de cinco transplantes de pâncreas após transplantes renais.
Hoje, a instituição contabiliza mais de 6.000 transplantes renais, sendo mais de uma centena deles em crianças com menos de 15 kg, uma das maiores experiências do Brasil nesta modalidade. Esse conhecimento permitiu o desenvolvimento de uma técnica que possibilita o implante de um rim de doador adulto em uma criança com peso inferior a 15 kg, por via extraperitoneal, em contraponto à grande maioria dos autores que recomenda o acesso transperitoneal, tema que foi substrato de sua tese de doutorado, aprovada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Cirúrgicas da Faculdade de Medicina da UFRGS.
Guarda com carinho a láurea do Certificado de Reconhecimento Especial – Equipe de Transplantes Pediátricos, ISCMPA. É Irmão Benfeitor da Santa Casa de Porto Alegre, fundador da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos e membro da Câmara Técnica de Pâncreas do Sistema Nacional de Transplantes.
Graças ao conteúdo científico produzido, foi convidado especial do então presidente da ASRM, José Camargo, para assistir à última reunião da entidade no ano de 2014. “Fiquei encantado com o ambiente durante um debate sobre o futuro da medicina no contexto político da época”, recorda ele. “Vendo meu entusiasmo, Camargo sugeriu que eu preparasse um currículo mostrando minha trajetória e me candidatasse à Academia, conversando com os acadêmicos e explicando como eu poderia contribuir com a ASRM”. Em 2015, na primeira rodada de votação, foi escolhido.
Referenciado pelos valores dos pioneiros de Morano Calabro, amparados pelo tripé trabalho, economia e família, ele reserva um capítulo especial aos seus descendentes diretos, constituídos na primeira união com Dona Maria Aparecida Schneider Vitola. O primogênito do casal, Eduardo, é psiquiatra e pai de Marcelo. O segundo filho, Luciano, pediatra, pneumologista e professor da Ulbra, é pai de Leonardo e Arthur. Mãe de Antônio e Felipe, a filha caçula, Roberta, é psicóloga e mora nos Estados Unidos, onde gerencia o departamento de recursos humanos de uma multinacional brasileira. “A família é minha maior fortuna”, decreta, ao lado da atual esposa, Arlete Teresinha Stiefelmann, endodontista e mestre em Odontologia pela PUC, com quem se relaciona há 23 anos.
Assista ao depoimento completo do Acadêmico no vídeo disponível abaixo.