O termo “pandemia” descreve uma epidemia de proporções globais. “Pandemia” e “epidemia” tradicionalmente descreviam a disseminação de doenças infecciosas em populações humanas. Uma epidemia tem 3 momentos:
1) disseminação rápida da doença;
2) auge de transmissão, com o maior número de indivíduos afetados e mortes dos suscetíveis;
3) desaceleração e eventual resolução do processo pela imunidade adquirida por sobreviventes (ou pela vacinação) e pela persistência dos não suscetíveis. Tivemos exemplo prático recentemente com a pandemia de Covid-19, como antes foram as gripes e a “peste negra” medieval.
Acreditava-se que a obesidade se devia a fatores hereditários ou a “desvios” comportamentais e “fraqueza de caráter”. A disseminação acelerada provou que fatores ambientais são o elemento talvez mais importante na sua gênese.
O século XX viu surgir uma “pandemia” desta doença não transmissível. Iniciando no final da década de 1940 na América do Norte, o processo atingiu países de renda média-baixa, como o Brasil, nos anos 70 e 80. Nos últimos 30 anos, atingiu países de renda baixa, globalizando uma pandemia de doença não transmissível. Nos anos 90, a pandemia foi detectada também entre crianças. O mundo está na fase de ascensão no número de casos, sem sinal de estabilização. Os afetados desenvolvem comorbidades (diabetes melito tipo 2, hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia, doença aterosclerótica, câncer, apneia do sono, depressão). A expectativa de vida perde até 20 anos.
Tudo aponta para mudanças culturais, sociais e tecnológicas que se disseminaram pelo planeta: automação levando à redução da atividade física, industrialização da produção de alimentos, substituição das dietas tradicionais por dietas com presença crescente de ultraprocessados (altamente palatáveis, ricos em energia e baratos), urbanização de baixa qualidade (cidades cada vez mais hostis e que restringem a atividade física espontânea) e pressões sociais e midiáticas para comportamentos alimentares cada vez mais hedônicos.
Ao olharmos para a obesidade como uma pandemia, podemos começar a entender os porquês da relativa falência do tratamento individual observada até recentemente. E, observando os fatores desencadeantes da pandemia, podemos entender por que têm sido frustradas as esperanças de uma prevenção de novos casos, forçando a pandemia ao platô e, quem sabe, à fase de redução progressiva da incidência.
A prevenção da obesidade passa por mudanças sociais e culturais drásticas. Discute-se, ao redor do globo, maior regulação da produção de ultraprocessados, taxação de refrigerantes açucarados e álcool, melhores processos educacionais, melhor qualidade das refeições escolares, mudanças nos regimes de trabalho (liberando famílias para preparar alimentos de forma mais tradicional), melhorias intensas nas cidades (aumentando a chamada “caminhabilidade”), regulação da publicidade de alimentos e melhor rotulagem, subsídios a alimentos não processados e minimamente processados. Nenhuma destas ações seria fácil de implementar. Mas é certo que, ao fugirmos do necessário enfrentamento, estamos insistindo nos erros que nos trouxeram até aqui.
Consequência de nossa relativa incapacidade de adotar medidas epidemiologicamente impactantes, terminamos por pensar “prevenção” como de responsabilidade individual. Voltamos ao início: a responsabilidade é exclusiva da pessoa (“força de vontade”), e a ela caberia exclusivamente se proteger da doença. Em vez de buscarmos prevenção eficaz, terminamos por intensificar, com esta visão, o preconceito e os vieses contra pessoas afetadas pela doença.
A ciência desenvolve soluções para o manejo da obesidade no nível individual, mas estas são pouco acessíveis a grandes populações, são onerosas e não são livres de paraefeitos. Todos os sistemas de saúde são afetados pela incidência crescente de doenças não transmissíveis associadas à obesidade. No ritmo atual, viveremos o colapso destes sistemas.
Não há muito mais espaço para debate. Conhecemos os fatores mais provavelmente envolvidos. Ou os enfrentamos de forma corajosa ou, assim como em relação ao meio ambiente, cruzaremos uma linha de onde será impossível retornar.
Artigo escrito pelo médico endocrinologista e chefe do Serviço de Endocrinologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Dr. Rogério Friedman.