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Cadeira 40

José Fernando Domingues Carneiro

Filho de Benjamin de Araújo Domingues Carneiro e de Maria Menezes Carneiro, José Fernando nasceu em Fortaleza no Ceará em dois de março de 1908. De lá saiu em 1917 para Itacoatiara no Amazonas. Fez o curso primário em Belém e o secundário em duas cidades: Nova Friburgo (R.J.), no tradicional Colégio Anchieta, dos jesuítas, e em Lorena (S.P.), no Colégio São Joaquim. Após cursar os dois primeiros anos em Salvador, na Bahia, diplomou-se pela Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro em 1931. Da Faculdade, referia influências de Oscar Clark e Antonio Austragésilo, cuja clínica frequentou. Recém formado, desenvolveu clínica e atendia pacientes do IAPC no Rio de Janeiro, enquanto tentava especializar-se em Tisiologia e, de forma mais ampla, em Pneumologia, sem descuidar da intensa vida cultural e política. Levado por decepção amorosa e pela admiração que lhe despertavam os ingleses, alistou-se para enfrentar os submarinos alemães numa travessia marítima perigosíssima em plena guerra no ano de 1943. Chegou a Londres como parte de um comboio e passou a desempenhar suas atividades no Brompton Hospital. Também freqüentou o Queen’s Cottage Hospital, onde encontrou um grande mestre, o doutor Mc Indoe, cirurgião plástico. Das vivências no Brompton, contava “De hospitais, frequentei sobretudo um, para moléstias pulmonares: câncer, tuberculose e outras coisas feias e tristes.” Mais adiante dizia “Quantas vezes, vendo os casos trágicos do meu hospital de Brompton, ou, então, os mutilados que chegavam noutros hospitais, me vinha o sentimento, que tantas vezes nos assalta, de que a vida é uma coisa dura, por vezes cruel e que, para enfrentá-la, o homem deve ter fibra, ser rijo, duro e áspero. Entretanto, isso não exclui a bondade. Uma estranha combinação de aspereza e de bondade.” Permaneceu em Londres por mais de um ano e casou com a enfermeira Joan Audrey Mary Carneiro. Mais tarde adotou duas crianças inglesas.

Voltando de Londres, reassumiu sua clínica e a intensa vida intelectual e política no Rio de Janeiro. Participou da luta pela redemocratização do país e ajudou a fundar a Resistência Democrática, núcleo de intelectuais de várias correntes políticas e que, à sombra do Diário de Notícias e de seu bravo diretor Orlando Dantas, procurava apressar a volta do país à democracia. Carneiro firmou o manifesto da Resistência com escritores, jornalistas e profissionais liberais do porte de Adauto Lúcio Cardoso, Dario de Almeida Magalhães, Carlos Lacerda e um grupo de políticos que iriam fundar a UDN. Carneiro, entretanto, alistou-se nas hostes do Partido Libertador, cujo parlamentarismo o seduzia e cujo chefe, o doutor Raul Pilla, o impressionava pela coerência de atitudes e pelo perfil moral. São dessa época os textos que compõem o livro Catolicismo, Revolução e Reação (Agir, 1947). Nele, revela-se a multiplicidade de interesses e a inesgotável curiosidade de Fernando Carneiro. Alguns temas passariam a ser constantes nas suas manifestações de pensador católico. É o caso da imigração, cuja importância para o desenvolvimento do país não cessou de salientar, indo contra as teses anti-imigrantistas e nacionalistas dos órgãos de governo. Foi tão intensa sua participação na III Conferência Interamericana de Ação Social Católica (1948), na I Conferência de Imigração e Colonização (Goiânia, 1949) e em curso do Conselho Nacional de Geografia, que Alceu de Amoroso Lima falou de uma “verdadeira campanha de reabertura dos portos do Brasil ao homem europeu, na linha do Cairú do decreto de 28 de janeiro de 1808”. Hilgard Sternberg, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, publicou o ensaio Imigração e Colonização no Brasil (Rio, 1950), elogiando o autor e seu humanismo. Fez parte de grupo em que pontificava ao lado de Jackson de Figueiredo, Gustavo Corção, Alceu de Amoroso Lima, Jorge de Lima e outros. Com eles, no Centro Dom Vital e na revista A Ordem, ajudou a renovar o catolicismo brasileiro. Bernanos, Béguin e Jacques Maritain eram seus amigos

Grande professor, Carneiro jamais teve uma cátedra no Rio de Janeiro. Talvez por isso, tenha aceito o convite da Faculdade de Medicina de Porto Alegre, mediado pelo professor Raul Pilla, em 1951. Após nova estada na Inglaterra em 1953, dez anos depois da sua aventura guerreira, Fernando Carneiro foi contratado como professor da cadeira de Tisiologia da Faculdade de Porto Alegre em 1954. Aprovado em concurso no ano de 1960, passou a docente livre e logo assumiu a cátedra de Clínica Tisiológica. Autor de muitos trabalhos científicos publicados em revistas nacionais e internacionais, muito viajou para ministrar aulas e conferências. Recebeu prêmios e distinções, bem como foi professor homenageado de diversas turmas na Faculdade e paraninfo dos formandos de 1959. Foi o grande responsável pela modernização do ensino e do tratamento na Pneumologia do Rio Grande do Sul. Entusiasta da construção do Pavilhão Pereira Filho, anteviu conquistas e tudo fez pela sua afirmação. Coordenou as primeiras campanhas contra o cigarro em nosso meio e, segundo o doutor Nelson Porto, lutava pela preservação de parênquima pulmonar tanto quanto fosse possível. Primeiro, procurou poupar costelas nas toracoplastias da fase heróica na cirurgia da tuberculose, depois, lobos e segmentos de pulmão nas ressecções por neoplasias. A partir do professor Carneiro, passou pelo Pavilhão Pereira Filho a fina flor da Pneumologia e da Cirurgia Torácica. O pioneirismo no mestrado da especialidade e a posição de maior centro da América do Sul em transplantes de pulmão são frutos sasonados de sua semeadura, da mesma forma que o são os demais centros de clínica e cirurgia de tórax existentes em Porto Alegre e pelo interior do Estado. Sensível aos reclamos sociais, continuou médico do IAPC, presidiu o Instituto Isaac Pecis da instituição e participou de bancas para admissão de tisiologistas e radiologistas do Instituto por todo o Brasil.

Em Porto Alegre ampliou seu círculo de amizades. Freqüentava regularmente a casa de Érico Veríssimo, que prefaciou sua obra póstuma de ensaios. Lá, se encontrava com Augusto Mayer, Moises Velhinho, Carlos Reverbel, Limeira Tejo e tantos outros. No Partido Libertador convivia com Mem de Sá, Paulo Brossard, Décio Martins Costa e principalmente Raul Pilla, a quem dedicava profunda admiração. Tornou-se profundo conhecedor da colonização alemã no Estado. Seus estudos Os Alemães no Brasil e Karl von Kozeritz são primorosos. Acostumado a sempre defender a vida, era contra a violência consubstanciada na tortura, na pena de morte, no aborto e na eutanásia. Produziu importante monografia contra “a abreviação caridosa da vida”, em que misturou conhecimento, espiritualismo e vivências sofridas como a da agonia e morte do amigo Jorge de Lima, que acompanhou de perto. Em Porto Alegre escreveu vários ensaios que foram reunidos após sua morte no livro [Psicologia do Brasileiro. Após 1964, tornou-se incisivo crítico da violência institucional imposta ao país e com isso afastou-se por algum tempo do amigo Gustavo Corção. Polemista, era homem de firmes convicções, mas cultivava paradoxos. Érico Veríssimo, anotou de Anverso e Reversos: “Escrevi hoje essas duas coisas. Qual delas está certa? Ou ambas estão certas? Ao menos, o que penso eu? Não sei o que está certo nem o que penso.” Entre sério e galhofeiro, apresentava-se aos alunos como um anarco-socialista-cristão.

José Fernando Carneiro, em 11 de novembro de 1968, faleceu vítima de um acidente vascular cerebral e confortado pelos sacramentos que teve tempo de buscar antes de entrar em coma. Foi sepultado no cemitério de São João Batista no Rio de Janeiro.