Luiz Sarmento Barata, meu foi um notável médico de seu tempo. Médico num sentido muito forte, como aquele profissional que se dispõe a atender o doente não apenas enquanto portador de uma afecção patológica, mas também como uma pessoa que sente ameaçada a sua esperança de vida. Médico enquanto homem que percebe o homem na realidade de suas dificuldades, nos seus pequenos e grandes problemas, não raro agravados pelas circunstâncias sociais e econômicas. Médico como competência clínica e, sobretudo, como inigualável cirurgião na sua área específica. Médico, ainda, no seu escrúpulo moral e no rigor com que se dedicava ao estudo e ao trabalho de equipe.
De 1932, quando se formou em medicina, a 1967, quando ele faleceu, a sociedade brasileira passou por sucessivas etapas de transformação. Foi um decurso de 35 anos, compreendendo desde a Revolução de Trinta, que ensejou o processo de industrialização e urbanização do País, até os desdobramentos mais recentes que sobrevieram após a segunda guerra mundial, quando passa a configurar-se uma realidade mais complexa, caracterizada por acentuado desenvolvimento econômico, mas também pelo aguçamento dos conflitos que moldam a nossa estrutura social.
Nesse contexto, o exercício profissional da medicina, pelo “status” social que confere, não deixava de ter, ainda, algumas características que correspondiam aos remanescentes padrões oligárquicos de nossa sociedade.
Luiz Sarmento Barata, sem que o soubesse, tinha algo a ver com isto, pelo vigor de sua atuação e pelo seu prestígio, na medida em que concentrava poderes enquanto médico de grande clínica, enquanto chefe de Enfermaria e Professor. Em suma, enquanto personalidade dotada de marcas incomparáveis e carismáticas.
E no entanto, por paradoxal que pareça, ele sempre exerceu sua influência num sentido que nunca esteve voltado para a satisfação de seus interesses e conveniências pessoais, nem tampouco para a consolidação dos tradicionais grupos de poder. É de se ressaltar, assim, a dimensão democratizadora de sua atuação. Para ele, não importavam a origem e a social dos jovens médicos que recrutava para a sua equipe, mas sim as credenciais do esforço e do trabalho.
Quem correspondesse a isto podia contar com seu apoio, a sua experiência, a sua lealdade, e logo percebia que o seu rigor no trabalho não admitia imediatismos e negligências. Escrupuloso e impermeável aos privilégios, era incapaz de pleitear vantagens para si e a sua família.
Esta conduta, que timbrava pelo escrúpulo, era seguida à risca pelo Professor Barata, inclusive ao cobrar consultas e honorários profissionais. E isto ele fazia com muita parcimônia, a ponto de, às vezes ser criticado por certos colegas. Não obstante, mantinha tal critério, deixando claro que a profissão do médico, embora remunerada, nada tem a ver com um negócio. Isto, sem contar as horas que dedicava aos pacientes da Santa Casa, trabalho que àquele tempo, era inteiramente gratuito.
Havia, sem dúvida, um alto teor de desprendimento na atuação do Professor Barata, o que se articulava com a sua sensibilidade para os problemas sociais e coletivos. Quando médico do Sindicato dos Empregados no Comércio, ele conheceu de perto os que, na hora da doença, tinham de enfrentar as limitações impostas pelos baixos salários e suas dolorosas implicações. Lembro bem quando ele ia atender esses clientes em casa, como era comum naquele tempo. Eu o acompanhei algumas vezes, quando menino, através de bairros longínquos. Então, tudo nele convergia para o gesto solidário, infundindo confiança, numa simpatia humana que abria caminho para o desempenho eficiente do médico. Tinha, na verdade, uma aguda consciência da função social da medicina.
Estes traços de sua personalidade explicam o seu interesse pelos problemas coletivos, assim como suas episódicas passagens pela política.
Foi ele, com efeito, o organizador e o primeiro Diretor do Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre. Depois, empenhado em ver assegurada a gratuidade do ensino secundário nas escolas públicas do Estado, ocupou a Superintendência do Ensino Secundário. A seguir, tornou-se Secretário de Educação e Cultura do Estado. Sua breve gestão caracterizou-se, no entanto, por importantes decisões, sendo de ressaltar o impulso que deu à criação de escolas técnicas rurais, além de amplo e criterioso trabalho de reestruturação dos quadros do magistério estadual.
Posteriormente, incubido pelo Governador Walter Jobim, elaborou o plano de estruturação dos serviços de saúde, propondo então a criação da Secretaria de Estado da Saúde, projetada no sentido de integrar organicamente os setores de Assistência Social.
Jamais, porém, se afastou da sua atividade de médico. Esta sempre foi a seara onde mais empregou a sua enorme capacidade de trabalho. Interessado no avanço e desenvolvimento de sua especialidade, fundou e dirigiu a revista “Urologia”, mantida às suas expensas, primeira revista nacional nesta área específica, semente da atual “Revista Brasileira de Urologia”, órgão oficial da Sociedade Brasileira de Urologia.
Foi, aliás, significativa a sua produção científica, tanto em trabalhos publicados como pela sua participação em vários congressos nacionais e estrangeiros. É de referir, neste sentido, o trabalho já clássico que apresentou no Congresso Americano e Brasileiro, realizado no Rio, em 1939, sobre “Litíase Reno-ureteral Infectada”. Afora os artigos e numerosos textos que publicava em sua revista, devo mencionar, sobretudo, a consistente Tese que apresentou ao concurso para o provimento da Cadeira de Urologia, em 1956, sobre “Hipertrofia da Próstata”, onde também documenta a sua experiência com 400 casos operados pela técnica de Millin. Anos antes, aliás, fora convidado pelo Professor Luciano Gualberto, catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, para realizar esta operação no Hospital de Clínicas daquela universidade.
A tudo isto, juntava-se a sua constante participação em entidades da classe médica, ou dedicadas à promoção da especialidade, como o Conselho Regional de Medicina, do qual foi conselheiro até o fim de sua vida, o Sindicato Médico e a Sociedade de Medicina, nas quais exerceu todos os cargos, de Tesoureiro a Presidente e, ainda, a Associação Médica do Rio Grande do Sul, cujo Departamento de Urologia e Nefrologia fundou, sendo eleito seu primeiro presidente.
Prestou concurso para Docente-livre em 1935, classificando-se em primeiro lugar. Foi, mais tarde, escolhido para representar os docentes- livres junto ao Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu o Ambulatório de Urologia da Santa Casa, passando depois a ser Chefe de Clínica da Enfermaria 31 e em 1956 o seu Diretor.
Em 1951, viajou para os Estados Unidos, onde estudou na Michigan University, com o Dr Reed Nesbit, um dos mestres da cirurgia endoscópica.
Trata-se, com efeito, de uma vasta folha de serviços, que evidencia uma vida de trabalho exuberante, não só na área de sua específica atuação médica, pois se desdobrava também numa dimensão social.
Desde muitos anos, Luiz Sarmento Barata esteve ligado à Irmandade da Santa Casa. Aliás, exercera por várias vezes a direção do Hospital São Francisco. Na fase final de sua vida, foi eleito Provedor daquela tradicional instituição. Ao assumir o cargo, a vetusta Santa Casa de Misericórdia, hospital que sempre acolheu gratuitamente a população pobre de Porto Alegre e mesmo do Interior do Estado, enfrentava uma conjuntura extremamente problemática: a Faculdade de Medicina da URGS, que ali tinha o seu hospital-escola e, portanto, estipendiava os professores e aportava recursos para auxiliar na manutenção das despesas, estava em vias de transferir-se para o recém concluído Hospital das Clínicas. Ora, a Santa Casa, cujas receitas provenientes de seus hospitais particulares não cobriam sequer uma ínfima percentagem de suas despesas, ficaria, ademais, privada dos professores que davam assistência às enfermarias. Para fazer face a esta situação, um grupo de abnegados – entre os quais o Professor Luiz Sarmento Barata – idealizou e montou uma nova faculdade – a Faculdade Católica de Medicina – cujo Departamento de Cirurgia ele passou a dirigir.
Teve, contudo, de enfrentar na sua gestão à frente da Santa Casa as duras conseqüências de uma situação financeira, que só muitos anos depois, quando aquela instituição deixou de ser de misericórdia, pôde ser superada, como se sabe.
Foi, na verdade, o seu último combate. Prostrado, em plena atividade, por um acidente vascular cerebral, sobreviveu poucos dias mais. Faleceu a 8 de maio de 1967, aos 63 anos.
Permiti que, ao finalizar esta evocação de Luiz Sarmento Barata, eu possa enriquecê-la com o depoimento impressivo de um colega que muito privou com ele nos ultimos anos de sua vida – o admirável médico e intelectual que foi o Professor Fernando José Carneiro.
Eis, em algumas passagens, as certeiras e belas palavras que Fernando Carneiro proferiu junto ao túmulo do Dr. Barata:
“Luiz Sarmento Barata era um encantado pela sua profissão cujos desenvolvimentos acompanhou até o fim de sua vida, atento às novidades e ao progresso. Faz apenas 15 dias que me entretive com ele em longa palestra, na qual me expôs com vivacidade e encantamento a gênese de certo tipo de carcinoma. E ficou de me dar as necessárias referências bibliográficas.”
Prossegue, ainda, o Professor Carneiro, referindo-se ao colega:
“A sua bondade era uma bondade, sob certos aspectos, pouco brasileira. Porque não era uma bondade melosa nem palavrosa. Era a bondade real de um homem afirmativo, aparentemente áspero, e que gostava de assumir posições claras e inequívocas. Nenhuma flacidez no corpo ou no espírito. Era um homem marcado e de invulgar coragem pessoal. (…)
Não receiou a morte. Dias antes dela, pairou-lhe a ameaça de viver, ainda, alguns anos mais como inválido. Para um homem ativo, enérgico e vivíssimo como ele, isso seria intolerável. Então seu boníssimo coração veio em seu auxílio e o livrou do castigo de uma vida mutilada. E deu-lhe o fim rápido dos grandes lutadores.
(…) Ele teve uma morte digna de seu temperamento e de seu caráter.”
No início do ano letivo de 1962, Luiz Sarmento Barata proferiu na Faculdade de Medicina da URGS a aula inaugural abordando o tema “Medicina e Humanismo”. Talvez, a transcrição de um pequeno trecho desta aula, possa revelar o que ele pensava e sentia sobre a sua profissão ao postular um humanismo médico como visão real do homem. Eis as suas palavras, que a nosso ver ganhou profundo sentido, especialmente no mundo de hoje:
“Em que consiste essa visão real, esse humanismo médico? Diremos que o nosso humanismo, essa nossa concepção do homem que o exercício da medicina infunde em nós, consiste em não pactuar jamais com os esquemas abstratos, com as meras fórmulas, com o sumarismo das ideologias que pretendem reduzir o homem a um conceito, encerrando-o em perspectivas parciais, que o desfiguram e o mutilam. Nada temos a ver com o homem abstrato, com o homem visualizado a partir de um ângulo específico, e sim com o homem que é inteireza humana, aquele que podemos identificar como presença ao nosso lado, chamar-lhe pelo nome, apertar-lhe a mão, afeiçoá-lo a nós como igual.”.