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Do ventre ao colo materno*

Aloyzio Achutti**


Há muitos anos encontrei na revista “Scientific American” um artigo muito curioso que relatava as experiências de um cientista provocadas pela observação de que quase todas as madonas representavam a mãe segurando a criança no colo aconchegada sobre o lado esquerdo, recostadas onde melhor os batimentos do coração podem ser percebidos.

Há uns 4 anos tomei conhecimento sobre uma outra linha de pesquisa de um cientista inglês chamado Barker, que muito me impressionou e me tem sido útil para compreender um pouco mais o complexo domínio das assim chamadas doenças cardiovasculares.  Estas pesquisas, nas quais mais gente tem trabalhado, poderiam ser resumidas na mensagem contida  no título de um artigo publicado no British Journal of Medicine em 1991: “O útero é mais importante do que a genética”.

Embora altamente sedutoras suas idéias, por serem novas e um tanto revolucionárias, eu as vinha usando parcimoniosamente, só em conversas ou em reuniões científicas.

Mais recentemente encontrei outro veio, agora no domínio da neurobiologia e do comportamento, que me foi apresentado por um pesquisador americano Sapolsky, em seu livro “Porque as zebras não ficam com úlcera”, publicado no início de 1994.

As madonas e estas duas linhas de pesquisa se associaram de tal forma em minha cabeça, que me sinto na obrigação de compartilhá-las.  É bem possível que esta associação possa ser considerada como temerária nos meios acadêmicos, mas em território neutro temos o direito de elocubrar e até de fazer um pouco de ficção científica para completar alguns claros e arredondar certas pontas. Aliás foi Albert Einstein que disse: “imaginação é mais importante do que o conhecimento”…

De qualquer forma por estas experiências todos nós passamos e não faltará um psiquiatra que nos interprete como saudosistas, querendo retornar ao remoto seio perdido.

Vamos aos fatos relacionados com o primeiro grupo de pesquisas e que podem ser perfeitamente compreendidos, mesmo pelos não iniciados: as doenças cardiovasculares (infarto do miocárdio, esclerose de artérias coronárias e de outras, hipertensão arterial, trombose e derrame cerebrais, além de uma série de outras formas menos conhecidas de doenças do coração e da circulação)  são responsáveis pela maior parte das mortes em quase todo o mundo. Em nosso meio atingem 35%, sabendo-se que muitos dos que recebem um atestado de óbito com outra causa principal, sofriam já ou também destas doenças. Em alguns paises  com menor mortalidade em grupos etários mais jovens e com população estruturalmente mais velha, este grupo de doenças ultrapassa os 50% de todas as causas de morte.

Todos já sabem que nós médicos quando tentamos explicar a origem de uma destas doenças, vamos buscá-las num conjunto de fatores, chamados de risco, que são hereditários e/ou se relacionam com o modo de vida de cada um: hipertensão arterial, excesso de gorduras no sangue, diabete melito, excessos alimentares, estresse, fumo, sedentarismo. e história familiar. Embora esta lista esteja sempre crescendo, seu conjunto não consegue explicar mais do que 40% dos casos, motivo pelo qual a procura é contínua.

O pesquisador inglês encontrou em Southamptom (GB) livros de registro, tipo batistério, com todos os nascidos, desde 1911, onde constavam, junto à identificação, informações sobre peso, estatura, perímetro cefálico do recém nascido, tamanho da placenta, tipo de alimentação durante o primeiro ano de vida e desenvolvimento pondero-estatural.

Procurando estas mesmas pessoas 50 anos depois e correlacionando os dados peri natais com o estado de saúde, ele encontrou maior força preditiva nas condições de desenvolvimento fetal ao nascer e no primeiro ano de vida, do que no conjunto dos fatores de risco tradicionais anteriormente já enumerados.

A partir destas constatações é possível lucubrar que o desempenho do coração e da circulação, para o resto da vida é programado conforme as condições de desenvolvimento fetal e do início da vida extra-uterina, como se as condições iniciais fossem determinantes para planejar a construção de um organismo com maior ou menor durabilidade e resistência.

Até aqui dá para imaginar um certo mecanicismo no planejamento natural com um certo sentido de fria economia, na qual fosse escolhido a priori onde valesse a pena investir ou não.

Mesmo aceitando a evidência dos fatos, eu logo suspeitei que a coisa não pudesse ser assim tão simples e linear. Foi daí que dei com o livro do neurobiólogo americano. Ele trabalha com estresse e com o desempenho do organismo nestas condições.

Vamos de novo aos fatos: há um grupo de doenças, aparentemente não relacionadas, que frequentemente afetam os adultos, uma ou mais são quase a regra na velhice, e seu conjunto enfeixa a maior parte dos atestados de óbito. São quase todas as doenças cardiovasculares anteriormente enunciadas, as úlceras de estômago e duodeno, a depressão, a impotência e outras disfunções sexuais, o envelhecimento precoce, a osteoporose, a obesidade, o diabete melito, a perda de memória, a constipação crônica, a colite ulcerativa, várias deficiências do sistema imunológico de defesa e diversos tipos de câncer.  Todas estas doenças têm alguma relação com estresse. Fica evidente para qualquer observador que situações muito intensas de estresse agudo, ou condições crônicas de estresse, não tão intenso, terminam provocando um ou mais destes males.

Nós médicos aprendemos que o estresse se acompanha de aumento da produção interna de hormônios das glândulas suprarrenais (dos quais são exemplo a adrenalina e a cortisona), e que a administração, de origem externa, de substâncias químicas com propriedades semelhantes a estes hormônios, naturalmente secretados pelo organismo, são capazes de provocar este mesmo cortejo de doenças.

Lembrem-se que quando apresentava os fatos relacionados com as doenças cardiovasculares, mencionei o estresse como um dos fatores de risco. Realmente, o estresse não somente se constitui num fator diretamente responsável pelo desencadear de mecanismos capazes de agredir vários setores de nosso organismo, como também pode ser responsabilizado pela concentração de outros fatores de risco, em grande parte ligados ao comportamento humano, como o uso do fumo, o sedentarismo e os excessos alimentares, abuso do álcool, e a droga-adição.

Em geral procuramos ingenuamente o culpado junto a cena do crime ou ficamos esperando que para lá ele retorne e se identifique. Buscamos de novo, na vida recente do enfermo, um comportamento nocivo, ou o elemento causal responsável pela sua doença.

As pesquisas neurobiológicas têm demonstrado que os níveis sanguíneos de cortisona, entre outros mecanismos de regulação, tem um importante controle num centro cerebral, chamado hipotálamo, que por sua vez tem ligações importantes com outros centros que regulam nossas emoções e com a memória.

Também é fácil compreender que existam mecanismos de retro-alimentação. Aliás nosso corpo está cheio deles, para que, sem precisar se preocupar com mostradores e indicadores de níveis disto e daquilo, se mantenha a harmonia e o funcionamento dentro de limites de segurança, permitindo entretanto, uma lá que outra, incursão por áreas de risco, em situações emergenciais.

O que me tocou, no entanto, foi a descoberta de que o desempenho deste tal de hipocampo também é programado muito precocemente, particularmente nas primeiras semanas de vida. Assim, importa sem dúvida o nivel de estresse a que um sujeito se expõe na vida adulta, mas a competência de seu organismo no manejo deste mesmo estresse, se ele existir, vai depender de uma programação que foi feita lá no início da vida, o que vem reforçar os resultados das primeiras pesquisas enunciadas.

Por curiosidade, vale a pena relatar sumariamente que a descoberta desta programação precoce do hipocampo foi resultado da observação do comportamento de ratos. Observadores haviam registrado que a ratazana (mãe) trata desigualmente a ninhada. Todos têm oportunidade de mamar e têm cuidados os básicos, mas alguns ratinhos merecem cuidados especiais, levando-os a mãe de um canto para outro da gaiola, como se tivesse por eles uma afeição especial. O acompanhamento destes ratos demonstrou que pela vida afora eles têm melhor desempenho frente ao estresse experimental, e que vários outros parâmetros objetivos, como celularidade do hipocampo, e níveis sanguíneos de cortisona, são neles também melhores do que nos seus pares.

O autor (Robert Maurice Sapolsky), com toda sua seriedade, diz reconhecer que tais observações obtidas em ratos e posteriormente também em cães, não nos autorizam a extrapolá-las para os seres humanos, e que demonstração experimental em nossa espécie nunca será possível, mas estas experiências nos permitem elucubrar e procurar vestígios de um nexo e um sentido mais amplo em toda a natureza.

Pois assim podemos aventar uma hipótese na qual o desenvolvimento fetal e do início da vida extra-uterina possa influir no resto de sua vida. Isto não vai contra a força determinante da carga genética que obviamente fica respeitada, mas sabemos que existem genes controladores de genes, capazes de ativá-los em determinadas circunstâncias, muitas vezes tardiamente na vida. O maior exemplo disto está no assim chamado “relógio biológico” que determina a diferenciação na própria duração do ciclo vital e que vai se manifestar sabidamente no fim da existência.

Esta hipótese também não tira a importância das experiências de vida de cada um, aquelas que cada um escolhe e as outras às quais é submetido sem chances de opção. Tanto uns como outros dos determinantes, no entanto, estriam modulados pelas circunstâncias que cercam a maternidade.

No sentido de um enorme respeito por estes momentos sagrados e críticos é que podemos reler nossa história e o mundo que nos cerca.

Considerando a composição cromossômica da mulher e de todas as fêmeas com a duplicidade cromossômica (XX) que o macho não tem, apresentando-se diversificado (XY) pode-se deduzir que o último deva fazer parte de uma etapa evolutiva mais recente. Assim, apesar da versão que nos apresenta a bíblia (não está em discussão a sua historicidade, mas a percepção cultural da época), seria mais razoável pensar que Eva, como menos diferenciada, tenha aparecido antes. Na própria embriogênese, pode-se dizer que até certo ponto todos os seres são femininos, aparecendo a diferenciação masculina posteriormente. E se a embriogênese repete a filogênese, este seria um argumento a mais no mesmo sentido.

Sem dúvida o papel feminino na geração e na determinação inicial da vida parece muito mais importante do que o do parceiro que basicamente só tem como essencial a contribuição gênica através de seu gameta. A composição da carga gênica é bilateral, mas o desenvolvimento uterino e do suporte ao desenvolvimento inicial nos mamíferos depende muito mais da fêmea. Em nosso caso, grande parte da formaçào cultural também depende da mãe, embora a inserção na estrutura social esteja geralmente mais vinculada com o engajamento paterno.

Embora Adão tenha sido feito primeiro, sua primeira decisão crítica ele a entrega para Eva, e vem dizer depois, em tom de desculpa, para Javé: “Pois é, a mulher que me deste como esposa, me deu de comer (o fruto) da árvore, e eu o comi”. Ele se submete, na área política à escolha dela. Ela é que determina o seu comportamento.

Na linha das associações até aqui apresentadas, poderíamos dizer que que existem evidências também biológicas a demonstrar que o futuro da humanidade é escrito no trajeto do útero até o colo da mãe. Tudo o que vem depois, e que poderá durar até cem anos ou mais, será modulado pelo esquema impresso durante um período não muito mais longo do que uns 15 meses.

Podemos também dizer que a próxima geração está toda ela já predeterminada, restando-nos, se quisermos obter resultados radicais, intervir basicamente nas futuras mães. Sob este ponto de vista a epidemia de cardiopatia isquêmica e doença cerebrovascular (2/3 de todas as causas de morte por doenças cardiovasculares) do entorno de 2.050 já deve estar definida hoje. Da mesma forma os cardiopatas que estou atendendo hoje foram marcados em torno da década de trinta!…

As condições nutricionais obviamente são críticas neste período, mas não são menos importantes as condições psicológicas e de segurança e suporte ambiental, para que a mãe possa dar o trato afetivo e cultural ao projeto que iniciou em seu ventre e que vai acabar em seu colo.

De certa forma estamos repetindo o gesto de Adão, colocando nas costas (ou no útero e no colo) de Eva a responsabilidade pelo nosso futuro. O que importa é identificar um período crítico de nossa existência, se é que existe, para poder investir prioritariamente nele. Isto, de maneira nenhuma tira a responsabilidade do homem, de cujo suporte material e afetivo depende em grande parte as condições da companheira para dar a atenção necessária à sua prole. E, como geralmente de cada gestação resulta um só filho, a mulher não tem a necessidade de fazer discriminação numa ninhada. Cada filho pode ter a atenção que precisa, no momento adequado.

Tudo isto pode reforçar as políticas tradicionais de saúde que davam ênfase aos programas materno-infantis.  Seguramente a fundamentação destas propostas que já são antigas era outra, mas isto também não importa.

Dizia-se que o interesse pelos objetivos de saúde pública eram capitalistas e visavam garantir a mão de obra, a força humana de produção. Em curto prazo, na medida em que a mulher e o filho tivessem menos problemas, o homem poderia trabalhar melhor; e, em longo prazo, a saúde da nova geração garantiria sua aptidão para o trabalho e para a produção.

O primeiro resultado que se obteve com os programas materno infantis foi a redução da mortalidade infantil: menos crianças morriam no primeiro ano de vida. Estes resultados no entanto não asseguram a saúde e o bem estar dos sobreviventes. Pode-se dizer que antes havia um mecanismo de seleção que agora foi eliminado. Embora deixem de morrer muitos infantes, sobrevivem marcados para adoecer e morrer mais precocemente. Provavelmente populações adultas com morbimortalidade aumentada, têm a sua desvantagem não somente às condições gerais de vida e de trabalho inadequadas, com maior estresse e riscos, mas também já vêm marcados com uma menor capacidade de se defender destes riscos e de gerenciar o estresse.

Há quem diga que o mito do paraíso perdido é a expressão do sentimento de perda do útero e do seio materno. Será que eles não têm razão? Será que o Adão não estava querendo dizer exatamente isto quando jogou a responsabilidade pelo futuro da humanidade na decisão da mulher?

*Artigo publicado no livro Os Médicos (pr)escrevem. SoLivros. Porto Alegre, 1995 (pag. 21-29)

**Acadêmico