Antônio Kalil**
As consequências diretas desta catástrofe pandêmica já são conhecidas por todos: vidas ceifadas, famílias desestruturadas e os sistemas de saúde público e privado desafiados ao limite. A saúde financeira das pessoas, do comércio, da indústria e dos serviços foi impactada em níveis nunca imaginados, com repercussões ainda imprevisíveis no médio prazo. Entretanto, existe um grupo de pessoas que ficou desassistida neste período, seja por não conseguir acesso aos serviços de saúde, seja pelo medo de se expor ao coronavírus nos hospitais ou clínicas, apesar de todo o esforço destes para garantir áreas livres de covid.
Assim, a próxima onda de vítimas desta pandemia serão aqueles indivíduos com situações sérias de saúde que deixaram de acessar o sistema. Para pessoas com câncer, esse tempo pode ser determinante entre o diagnóstico precoce e a chance de cura ou o tratamento paliativo e a morte. Dados indicam que mais de 100 mil pessoas terão seu diagnóstico de câncer retardado neste ano no país. Em algumas localidades, as pessoas nem sequer tiveram acesso ao resultado de uma biópsia feita em março. Estudo feito na Inglaterra estima que o número de mortes por câncer deve aumentar em 20% em decorrência desse atraso no diagnóstico.
Pessoas com doenças crônicas como diabetes, hipertensão ou enfisema não estão fazendo o acompanhamento ideal, o que vai repercutir em piora da qualidade de vida e risco maior de mortalidade. Os transplantes de órgãos, única alternativa de vida para muitos, caíram 40% no país no segundo trimestre, com 26% de doadores a menos, segundo a ABTO, o que também significa aumento da angústia de quem aguarda em lista de espera. Sem contar os casos agudos de infarto, AVC ou peritonite que foram atendidos tardiamente neste período e tiveram seu prognóstico comprometido. Ou a redução de 78% de procedimentos cirúrgicos oftalmológicos no RS, que poderão levar à perda de visão de muitas pessoas. A diminuição da atividade física, piora de hábitos alimentares e aumento do consumo de álcool deverá ter forte impacto nas condições de saúde de nossos cidadãos. Sem falar da sanidade mental.
Devemos continuar atentos em relação à propagação do coronavírus, mas os hospitais e as equipes de saúde devem estar preparados para atender às demais doenças e minimizar este prejuízo. A população deve contornar o seu medo, pois o risco da evolução de outras enfermidades pode ser ainda maior do que o da covid.
*Artigo publicado originalmente no jornal Zero Hora em 3 de setembro de 2020
**Diretor médico da Santa Casa de Porto Alegre e professor da UFCSPA | [email protected]