(Discípulo, amigo e companheiro de trabalho de Mario Rigatto por quatro décadas. Livre-docente e professor emérito de medicina. Membro titular das Academias Sul-Rio-Grandense e Nacional de Medicina.)
Noite escura. Meu querido avô materno, fumante, nefropata, hipertenso e cardiopata acorda, senta na cama e desenvolve quadro de edema pulmonar. Naquele tempo, os atendimentos faziam–se em casa e planos de saúde não existiam. Eu, com dezessete anos, e minha mãe dirigimo-nos a buscar socorro de um já famoso jovem médico morando próximo. Vestido com um robe de chambre, nos atende gentilmente, ouve as queixas e pede um momento para preparar-se. Retorna impecavelmente trajado, com a eterna gravata borboleta, medica meu avô e este sai da crise. Por um tempo continua a atendê-lo e conquista gratidão eterna. Foi assim que conheci Mario Rigatto e que internalizei sua primeira imagem: gentil, sério, competente, elegante.
Anos depois, eu, terceiranista de Medicina, frequentando a Enfermaria 29 da Santa Casa de Porto Alegre — sede da Cátedra de Clínica Propedêutica Médica da Faculdade de Medicina e do Serviço Central de Cardiologia, dirigida pelo Professor Rubens Maciel — e absorto nas minhas tarefas, recebo a oferta de um aperto de mão, como fez a todos os demais colegas e alunos presentes: era Rigatto, com um largo sorriso, retornando de um estágio de três anos em cardiopneumologia nos Estados Unidos. Nessa ocasião, não mais praticava clínica particular, pois optara ser o primeiro professor em tempo integral da UFRGS, e assim continuou a vida toda. Acompanhei-o desde então, como aluno, como residente, como médico, como professor, como pesquisador, como amigo, como admirador: geralmente cada palavra que proferia ou ato que realizava era fonte de inspiração. Cedo aprendi que, incansável, cada ação que praticava parecia duas ou três, tais suas implicações e consequências. Apesar de loquaz, não desperdiçava palavras, pois tudo que pronunciava era aproveitado. Sempre persuadindo e não obrigando, indicando caminhos, não postergava para amanhã a tarefa de hoje.
O que veremos no presente livro: fases de uma gloriosa vida peculiar, uma mistura de herança germânica, isto é sua herança materna, com peninsular, sua herança paterna — tanto eram seus imperativos categóricos quanto seus arroubos de paixão -, e ambas o conduziam com o arrebatamento de quem sabia seduzir. Em Rigatto, a complexidade da alma humana reuniu vontade inquebrantável, inteligência Superior, raciocínio lógico, dedicação ao trabalho, busca da verdade, compreensão das fraquezas humanas, fidelidade às origens, aos amigos e ao trabalho, amor à família e aos seus. Oriundo de uma família pobre, carregou consigo sempre a maior das riquezas, a riqueza de espírito, pois nunca o surpreendi triste ou pessimista. Por tanto tê-lo conhecido, focarei em alguns aspectos humanos que só os íntimos podiam perceber. Sentindo-se abençoado, seu primeiro agradecimento era para sua mãe, Dona Lili, professora Primária, que, sozinha, conduziu-o e mais três irmãos a concluírem cursos superiores.
O currículo de Rigatto é impressionante. O homem que mais fez conferências no Brasil. Pesquisador original e criativo, adicionou vários avanços à Medicina. Foi ativo na medicina societária, sendo presidente de várias sociedades médicas. Foi organizador do primeiro Curso de Pós-Graduação em área médica no Brasil e Vice-Reitor da UFRGS, entre tantos outros títulos. Também campeão na luta antitabágica no Rio Grande do Sul e no Brasil. Primeiro Presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Membro titular das Academias Sul-Rio-Grandense e Nacional de Medicina, detentor da Ordem do Mérito Médico. Porém, Mário Rigatto foi Professor acima de tudo.
Com um giz na mão e um quadro negro, fazia mais Pelo ensino que uma equipe inteira de audiovisuais. Carreira ascendente até professor e pesquisador, saiu da sala de aula para conquistar o mundo, Escrevi: “Mestre da Palavra, artífice do conhecimento, fenômeno de eloquência, seduzia a todos que o ouviam. Elevou ao grau máximo os atributos de um grande orador: convencer, deleitar, persuadir. E o fazia com engenho e arte, pois na alma do grande cientista morava o grande artista. À união de belas palavras com ações magistrais o torna imortal”. A fusão perfeita entre o homem de ação e do homem de eloquência, o dom de agir conjugado com o dom de exprimir-se. Tantas e tantas vezes repetidos, seus predicados como médico, professor, pesquisador e conferencista lhe conferiram primeiros lugares, reconhecimentos unânimes e premiações extensamente citados, legando uma aura que transcende gerações. Todos são sobejamente cultuados e serão expostos ao folhear o presente livro.
Gostava da frase de Churchill de que “À coragem á a maior virtude, Porque dela dependem todas as outras”. Aplicando-a, lutou contra o tabagismo e seus arautos e não desculpava sua aceitação como morte legal, argumento que, segundo ele, só poderia proceder de desinformados ou de covardes e concluía: “Nem desinformados nem medrosos servem para líderes”. E ele soube ser líder em todas as ações que desempenhou.
Uma alma apaixonada, mesmo diante dos mais rigorosos problemas científicos não deixava de enfrentá-los com o deslumbramento de um aprendiz. O segredo do seu deslumbramento diante da vida forjava-se na capacidade de prestar atenção e perceber os pequenos detalhes da natureza, enquanto a maioria dos comuns passa por estes sem notá-los. Assim é que o canto dos pássaros, os jacarandás floridos, a arte de uma frase, a fragrância de uma mulher, a alegria de um amigo, as esculturas das nuvens, os seis corações do homem, cada nuance vista como causa e efeito num todo harmônico lhe despertava um êxtase quase religioso diante do prodígio da existência.
O amor à sua pátria e à sua terra o fez recusar vários convites para trabalhar no exterior, sempre justificando: “Nosso país precisa mais de professores e cientistas do que os ricos do exterior”, porém admirando-os e sem nenhuma animosidade, compreendendo que eventuais atrasos nativos devem-se mais a circunstâncias culturais que a exploração externa. Outra vez legou-me dois ensinamentos fundamentais: 1) “Devemos sempre dar o máximo de nós; os resultados serão consequência; se não vierem, pelo menos fizemos tudo o que era possível”; 2) numa época de desalento e estagnação em que a maioria parecia parar resignada, explicou: “Quando todos param é que você deve correr mais, porque, aí, a diferença aumenta”. Que lições para grevistas crônicos e disfarçados amantes de zonas de conforto!
Apaixonado por exercício, desaguou no remo sua competência física. Além das taças que: levantou, tornou-se presidente e depois patrono do clube Guaíba-Porto Alegre. Num domingo de manhã, soube que o presidente da República estava por perto, num ato oficial. Em vez de inibir-se diante da autoridade, foi até ele convenceu-o a inaugurar certo setor do clube que presidia e conseguiu que Juscelino Kubitschek o fizesse. Outra faceta de sua desinibição diante do possível: quando fumar nos aviões era permitido, antes de iniciar um voo postou-se na frente da cabine, explicou os malefícios do fumo para os viajantes e o perigo de fumar passivamente: ninguém fumou no voo! Certa vez, no preparo da festa de casamento de uma filha, alguém notou, com visível preocupação, que o número de lugares era menor que o de convidados. Rigatto não se abalou e, antes de encaminhar a solução, disse-me: “Que bom, significa que temos mais amigos do que pensamos!”
Entre tantas atividades, Rigatto teve uma que exerceu constantemente ao longo da vida, quase em silêncio — ele que era exuberante — com dedicação persistente, cuja recompensa vinha dos resultados e não da fama adicional que poderia proporcionar-lhe. Como um amor que conservava longe da trivialidade, essa era a menina dos olhos de Mario Rigatto. Durante 40 anos, numa simbiose perfeita com a Fundação Editorial Byk, estimulou e promoveu o autor médico nacional, à de estreante a consagrado, com um objetivo maior em mira: desenvolver as vertentes do conhecimento e da pesquisa médica em nosso país, no que ela tem de mais original e qualitativo. Numa atividade quase apostolar, assessorou a publicação de 180 obras, algumas hoje clássicas, que poderiam não ter sido ofertadas se ficassem a critério de uma indústria editorial que raramente deixa de se nortear pelo lucro imediato. Como professor, Rigatto sabia que ao exercer essa vocação, que a possuía como ninguém, seu desfecho valia por muitas e muitas aulas.
Sobre o fato nu e frio jogava o manto resplandecente da perfeita narrativa. Entre tantas ideias originais que desenvolveu e prêmios que recebeu, a dos seis corações do homem foi uma das que mais festejou. Reunindo conhecimentos fisiológicos anteriores, mas secamente expostos em compêndios oficiais, com elucubrações próprias a partir de estudos sobre circulação pulmonar desenvolveu a ideia de que o coração não é a única, mas apenas a principal peça que faz o sangue circular, numa exposição de tanto rigor científico quanto de beleza poética, uma ode à vida. Como Deus dá e tira, dos tantos corações que teve sobrecarregou demais o próprio e acabou perdendo-o em um transplante. Rubens Maciel e eu acompanhamo-lo até a sala cirúrgica. Complicações da amiloidose avançada levaram-no no pós-operatório, mas sobrepunha-se ao fracasso da cirurgia consolando os médicos ao lembrar que ganhar ou perder faz parte do jogo.
Também já escrevi: “Mário nunca mostrou medo e, se o tinha, era para vencê-lo. Mesmo diante da doença irreversível, disse-me sorrindo: “Sei que minha chance é pequena, devido à doença ser sistêmica, mas vou me agarrar no transplante cardíaco porque é tudo que me resta”. Quando, já em situação crítica, ao ver um ou outro colega não conseguir disfarçar a preocupação, animava: “Não te preocupa, está tudo bem; ganhar ou perder faz parte do jogo! Deve ser o primeiro caso na Medicina de paciente consolando o médico! Não fazia inimizades, apesar de ter opiniões firmes. De algumas injustiças que recebeu, não se queixava e, quando precisava criticar alguém, era tão construtivo a ponto de confundir o criticado, que ficava sem saber bem se era crítica ou elogio”.
“Uma vida bem vivida é uma vida longa.” Quem deixou essas palavras foi Leonardo da Vinci, considerado por muitos o maior gênio da humanidade. Em 71 anos, Rigatto viveu muitas vidas bem vividas. É possível que suas vidas vividas, de tão intensas, lhe tenham roubado a saúde. Sempre pronto a qualquer missão, não poupava tempo nem disponibilidade. Como não existe o dom da ubiquidade, pagou com abreviar a existência a conta de tantas realizações, um destino comum de homens acima de dois desvios-padrão da média. Mas seus exemplos continuam a deleitar-nos. E como figuras valem mais do que mil palavras, deliciemo-nos a partir de agora com imagens e relatos familiares, curriculares, profissionais e sobretudo humanos que, além de mostrar muitos percursos, apontam caminhos de uma vida inspiradora.