Carlos A.M. Gottschall*
Mais do que consagrar o direito divino dos reis, o absolutismo monárquico medieval de Portugal tornava-os detentores da verdade única e poder de vida e morte sobre súditos e até nobres. Justiça com a ponta do punhal fincada no peito do desgraçado e o cabo na mão do rei era comum. Predominava a hierarquia macabra em que o superior podia supliciar o inferior até o último elo da cadeia social. Democracia, direitos humanos, livre pensar eram quimeras inatingíveis. Para defender a fé cristã, a Igreja sacralizava a violência. Foi desse mundo duro, cruel, injusto e estratificado entre servos, trabalhadores, militares, nobres, realeza e papado que emergiram as forças colonizadoras do Brasil. Para a pequena população portuguesa colonizar o enorme território ultramarino foi escalada a marginalidade, os degredados. O Brasil era visto apenas como fonte de pau-brasil, escravos indígenas, índias lascivas e promessa de ouro. Os exploradores portugueses e franceses (sim, o Brasil quase foi francês e depois holandês) aqui vinham para predar o máximo, enriquecer no mínimo tempo possível e voltar ao reino.
Todos sabem que o descrédito da classe política brasileira sobrepaira sobre as eventuais mazelas de qualquer outra: mensalões, petrolões e outras vocações inimagináveis num país sério. Basta ver os tipos desprezíveis que têm ocupado a presidência da república, do senado, da câmara. Quando se fala nas falcatruas dos collors, lulas, dilmas, calheiros e asseclas, todos eleitos pelo povo (de quem é a culpa?), deve-se recordar a longa tradição herdada do reino. Ao longo da história, a corrupção foi politicamente institucionalizada, a ponto de tornar-se aceitável pelo senso comum (levar vantagem em tudo; se outros roubam, por que não eu?).
Já em 1543, após denúncias, uma comissão apurou e provou que Pero Borges “recebia indevidamente quantias de dinheiro levadas em sua casa” correspondentes a um ano de seu salário como corregedor. Depois que uma série de recursos e demandas impetradas pelo mesmo postergou a condenação por anos, em 1548 ele foi nomeado pelo rei D. João III – “por ser um leal súdito” -, ouvidor geral do Brasil, cargo equivalente a atual ministro da Justiça (qualquer semelhança?), com a real recomendação de que “todas as autoridades e moradores da colônia lhe obedeçam e cumpram inteiramente suas sentenças, juizos e mandados”. Uma centúria depois, Gregório de Mattos Guerra, o “boca do inferno”, ensinava que “todos os que não furtam, muito pobres; eis aqui a cidade da Bahia”. No caso, a Bahia era o Brasil.
No ciclo do ouro no século XVIII, seguiram-se fiscais reais que roubavam da coroa. Já em 1693, em vez de avisar o rei Dom Pedro II, de Portugal, da descoberta das primeiras gramas de ouro no Brasil, o agente do reino resolveu cunhar uma medalha para ele e outra para o descobridor, com a condição de que conservassem o segredo. Era ladrão roubando de ladrão, porque o interesse da coroa portuguesa restringia-se a manter a população ignorante e crédula, afastada da educação e proibida de ler ou debater idéias, com a obrigação principal pagar impostos: o quinto, o dízimo e as entradas. Até 1808 era proibido abrir uma tipografia no Brasil, enquanto Harvard já funcionava há mais de 150 anos. Os próprios inconfidentes mineiros não eram anjos: embora a nobreza da causa, muitos traficavam, sonegavam, recebiam propinas e protegiam amigos desonestos, sempre com a desculpa de que ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão. Como a cultura se perpetua, é bom parar aqui, pois nada mais é necessário para explicar o que veio depois: a hipertrofia de um estado tentacular e predador, restritor da iniciativa privada e do desenvolvimento cultural e científico, tratado como propriedade particular por seus donos promovidos pela mentira e pela demagogia.
*Membro titular das Academias Sul-Rio-Grandense e Nacional de Medicina. Presidente de honra da Associação Gaúcha da História da Medicina.